Meditação Bíblica: Resgatando uma Disciplina Espiritual Transformadora para os Cristãos

Entenda a importância desta prática bíblica para os dias atuais

Meditação Bíblica na vida dos cristãos, Vida Espiritual

A meditação bíblica é uma prática espiritual poderosa e transformadora que tem sido negligenciada por muitos cristãos, especialmente no evangelicalismo brasileiro. Este artigo busca resgatar essa disciplina espiritual, mostrando como ela pode fortalecer sua conexão com Deus e enriquecer sua vida espiritual. Embora muitas pessoas a associem erroneamente a práticas esotéricas ou orientais, a meditação bíblica tem raízes profundas na Palavra de Deus e na história cristã, e oferece um caminho prático para o crescimento espiritual.

O problema da “falta de tempo” nos dias atuais

Aliado a isso tudo, podemos notar claramente que o avanço da tecnologia tem contribuído significativamente para o desprezo ao silêncio e à falta de disponibilidade tempo de um modo geral. Evidentemente, o tempo é sempre o mesmo, mas a ocupação constante da mente humana com inúmeras informações, distrações, imagens e sons, geram um senso de perda de tempo sempre que falamos em ficar em silêncio e a sós com Deus.

Nesta mesma esteira, observamos que a superficialidade cognitiva que impera nos dias atuais, de certa forma, tem contribuído significativamente para a ruína intelectual das pessoas, especialmente dos crentes, na medida em que as pessoas passam a ser conhecedoras de muitas coisas, mas, ao mesmo tempo, são rasas em todo o conhecimento que possuem. De fato, parece-nos que hoje em dia o que importa é ser conhecedor de várias coisas, não importa o quão raso o conhecimento seja.

Como David W. Saxton deixou registrado em sua obra “O plano de Deus para a batalha da mente”, “o cristianismo moderno foi reduzido a uma religião superficial”.[1]David W. Saxton, O plano de Deus para a batalha da mente: a prática puritana da meditação bíblica (Brasília, DF: Éden Publicações, 2022), 11.

No entanto, importante gizar que o nosso foco nesta pesquisa não é propor uma crítica generalizada e vazia à nossa sociedade atual, ou mesmo criticar o uso da tecnologia. Nosso propósito é promover o resgate da meditação bíblica no meio cristão como disciplina bíblica e espiritual que deve ser vivida, ainda que estes cristãos estejam inseridos neste contexto social que estamos falando.

O que é meditação bíblica

Para fins de definição do que venha a ser meditação, importante notar o conceito trazido por Thomas Watson, que deixou registrado em seu livro “Um Tratado Sobre a Meditação”. Watson definiu meditação como a retirada de si mesmo da alma, a fim de que, por meio de um pensamento sério e solene sobre Deus, o coração seja elevado às afeições celestiais. [2]Thomas Watson, Um Tratado Sobre a Meditação: Um Cristão no Monte (Brasília: Legado Reformado, 2022), 10.

Sobre a compreensão acerca da retirada de si mesmo da alma, Watson entende que, assim como Cristo Jesus se retirava para orar na montanha, conforme relatado em Mateus 14.23, nós devemos nos “retirar do mundo”. [3]Ibidem, 11.

A expressão anterior está em aspas, visto que Watson não está apoiando um isolamento físico-social do mundo, mas ele consigna a importância de expurgarmos o pensamento mundano de nossas mentes ao iniciarmos a meditação. Isto porque, se a mente permanecer envolvida com o mundo, então, a meditação restará prejudicada.

No que tange ao pensamento sério e solene sobre Deus, Watson escreveu que a meditação não é um trabalho superficial, mas um trabalho de fixação atenta a um objeto específico, mediante a imersão dos pensamentos. [4]Watson, Um Tratado Sobre a Meditação: Um Cristão no Monte, 12. Assim, durante a prática da meditação deve haver a permanência desse pensamento no objeto. Deus é o objeto da meditação.

A meditação não é um trabalho superficial, mas um trabalho de fixação atenta a um objeto específico, mediante a imersão dos pensamentos.

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Também, para Watson, meditação é elevar o coração às afeições sagradas. Para melhor ilustrar isso, ele compara a necessidade de o cristão entrar em meditação para ser curado de suas feridas e um doente que entra no hospital necessitando de cuidados. [5]Ibidem, 13.

Com efeito, na meditação, o coração é curado por Deus de toda a morte provocada pelo pecado e pela imundícia, que é sempre proveniente do depravado coração do homem. De fato, o Senhor Jesus já afirmou que é do coração do homem que provém os maus desígnios, homicídios, adultérios, prostituição, furtos, falsos testemunhos (mentira) e blasfêmias (Mateus 15.19).

O coração do homem necessita de ser curado e só Deus pode fazer isso. Para tanto, a prática da meditação, segundo o pensamento de Watson, deve ser realizada pelo cristão.

Meditação é “coisa” de religião exotérica?

Infelizmente, em nossa cultura moderna, a meditação passou a ser mais identificada com sistemas de pensamentos não cristãos, tais como a prática da yoga, meditação transcendental, terapias de relaxamento ou o conhecido movimento da Nova Era. [6]Donald S. Whitney, Disciplinas espirituais para a vida cristã (São Paulo: Editora Batista Regular, 2021), 55.

O abandono da prática da meditação bíblica pelos cristãos abre espaço para que sistemas de pensamento não cristãos, tais como os citados acima, ocupem os espaços vazios deixados pelos cristãos. De fato, o abandono desta disciplina espiritual histórica hoje provoca uma reação de desconfiança no coração dos cristãos, de modo geral. Sobre isto, Donald S. Whitney assim discorreu:

Por ser tão proeminente em muitos grupos e movimentos espiritualmente enganosos, alguns cristãos se sentem desconfortáveis com respeito à meditação e desconfiados daqueles que se envolvem nela. Mas devemos nos lembrar que a meditação é tanto ordenada por Deus quanto exemplificada por homens Piedosos nas Escrituras. Só porque uma seita usa a cruz como símbolo, isso não significa que a Igreja deva parar de usá-la. Da mesma forma, não devemos descartar ou ter medo da meditação escriturística simplesmente porque o mundo a adaptou para seus próprios propósitos. O tipo de meditação encorajado na Bíblia difere de muitas maneiras dos outros tipos de meditação. Enquanto alguns defendem um tipo de meditação em que se faz de tudo para esvaziar a mente, a meditação cristã envolve o preenchimento da mente com Deus e a verdade. [7]Whitney, 55.

Donald S. Whitney

Interessante notar a ilustração usada por Whitney a respeito do uso da cruz. Ora, a cruz é uma identidade genuinamente cristã, que remonta os primeiros anos da história do cristianismo. Assim, como afirma o autor, a utilização da cruz como símbolo de uma seita não deve desencorajar os cristãos de permanecerem em suas identidades históricas, que trazem à memória o sacrifício puro e perfeito de Cristo Jesus, que fora pendurado no madeiro, na cruz do Calvário.

De igual modo, a utilização de práticas de meditação pelos pagãos não deve desencorajar os cristãos de permanecerem nas determinações de Deus, reveladas em Sua santa Palavra, que é de meditar nas Escrituras Sagradas, de dia e de noite (Josué 1.8; Salmo 1.2).

Qual a diferença entre a meditação exotérica e a bíblica?

Diferentemente das práticas orientais de esvaziamento da mente, a meditação bíblica é uma forma de preenchimento da mente com Deus e com Sua Palavra. É o desejo ardente pela comunhão com o Amado da nossa alma. É uma forma de aproveitar o tempo com Deus e se deleitar em Sua verdade e em Seu grande amor.

Em seu livro “Hábitos Espirituais”, David Mathis também afirma que a meditação bíblica como disciplina espiritual não implica o esvaziamento das nossas mentes, mas se trata de um enchimento com substância bíblica e teológica, que são verdades exteriores a nós. E não apenas isto, mas este conteúdo precisa ser mastigado até que nossos corações sejam preenchidos de forma ampla. [8]David Mathis, Hábitos espirituais: prazer em Jesus pela graça diária (São José dos Campos, SP: Editora Fiel, 2022), 52–53.

Apesar de o público evangélico de modo geral rejeitar a ideia da meditação sob o fundamento de que esta prática advém de disciplinas orientais pagãs, a meditação é disciplina bíblica e espiritual. É mandamento do Senhor para seu povo escolhido! Meditar é deleitar-se no Amado.

O que Deus determinou sobre a prática da meditação?

Após a morte de Moisés, Deus deu a Josué, filho de Num, várias instruções, dentre as quais podemos destacar: “Não cesses de falar deste Livro da Lei; antes, medita nele dia e noite, para que tenhas cuidado de fazer segundo tudo quanto nele está escrito; então, farás prosperar o teu caminho e serás bem-sucedido” (Josué 1.8).

Assim, o mesmo Deus que se revelou e deu a lei ao Seu povo ordenou que eles meditassem a todo o instante, trazendo à memória tudo o que o Senhor lhes havia dito.

A mesma ordenança pode ser enxergada claramente no Salmo 1, ocasião na qual o salmista diz ser bem-aventurado o homem que tem o seu prazer na lei do Senhor, e medita nela de dia e de noite.

Não podemos nos esquecer que o Deus da aliança, Yahweh, nos criou para fruirmos de um relacionamento pessoal com Ele. A prática da meditação nos faz lembra disto: de que Deus nos chamou para um relacionamento pessoal com Ele. Com efeito, as disciplinas espirituais devem ser vividas todos os dias. Mathis escreve que nós fomos criados para meditar. Assim, Deus nos projetou com a capacidade de parar e ponderar. O desejo de Deus é que não apenas o escutemos, ou leiamos de forma superficial e rápida o que Ele diz em Sua Palavra, mas que reflitamos sobre o que Ele diz e processemos tudo isso em nossos corações. [9]Mathis, Hábitos espirituais: prazer em Jesus pela graça diária, 52.

A meditação bíblica como um pensamento profundo sobre a revelação de Deus

Whitney define meditação como o “pensamento profundo nas verdades e realidades espirituais reveladas nas Escrituras visando ao entendimento, aplicação e oração.”

Assim, como ilustração de seu pensamento, Whitney afirma que a meditação é como imergir completamente um saquinho de chá e deixa-lo em infusão até que todo o rico sabor das ervas seja extraído e transferido para a água quente. [10]Whitney, 56.

Não podemos nos esquecer de que Paulo foi enfático ao desejar que a Palavra de Cristo habitasse ricamente em nós, o povo de Deus (Colossenses 3.16). Como afirma Mathis, “a meditação verdadeiramente cristã é guiada pelo evangelho, moldada pelas Escrituras, dependente do Espírito Santo e exercida em fé.” [11]Mathis, Hábitos espirituais: prazer em Jesus pela graça diária, 53.

A meditação bíblica como meio de crescimento espiritual

A meditação pode ser compreendida também como uma forma de prosseguir em conhecer a Deus. O conhecimento a respeito de Deus se dá pela leitura e meditação das Escrituras Sagradas.

De fato, muitas vezes, ao ser alcançado pela graça de Jesus, um cristão recém convertido possui pouco conhecimento a respeito de quem é Deus, apesar de ter sido gerada a fé genuína em seu coração, obra exclusiva e soberana do Espírito Santo.

Nesta senda, necessário é destacamos que o chamado para a salvação não é estático, mas dinâmico, e implica o desenvolvimento desta salvação todos os dias, conforme o apóstolo Paulo assim escreveu em Filipenses 2.12-13.

É óbvio que desenvolver a salvação não é cooperar com Deus para ser salvo, até porque a salvação é operada tão somente por Deus em sua soberania, do início ao fim. Trata-se monergismo, graça que vem do alto e alcança o mais miserável e indigno pecador.

Aliás, no verso 13, Paulo prossegue explicando que este desenvolvimento depende da graça de Deus, visto que é Deus quem opera em nosso viver tanto o querer quanto o realizar, segundo o beneplácito de sua soberana vontade. Com efeito, o desenvolvimento da salvação que Paulo faz referência diz respeito ao desenvolvimento da vida cristã, em prosseguir em conhecer a Deus e meditar nas verdades bíblicas todos os dias, para que o fruto do Espírito seja produzido (Gálatas 5.22-23). O Espírito Santo trabalha no interior do salvo para transformá-lo à imagem de Cristo, num processo de santificação progressiva.

Assim, a caminhada cristã é como uma trilha do conhecimento a respeito de Deus, sua Palavra e suas obras. Deus nos salvou para que possamos amá-lo e prosseguir neste caminho de amor até o fim de nossos dias. O profeta Oséias convocou o povo a conhecer e a prosseguir em conhecer ao Senhor (Oséias 6.3).

A meditação deve ser vista, portanto, como uma forma bíblica de prosseguir em conhecer a Deus, guardando a Palavra no coração para que não pequemos contra o Senhor (Salmo 119.11).

Uma importante definição sobre meditação que nos cabe ressaltar é a escrita por David W. Saxton, nestes termos:

A meditação divina tem um valor multifacetado. Ela nos fornece discernimento espiritual; melhora nossa leitura bíblica e vida de oração; aplica as verdades gerais da Bíblia pessoal e especificamente; fortalece nossos corações focando em verdades espirituais; e fornece benefício duradouro de ficar refletindo sobre as verdades que conhecemos. [12]Saxton, O plano de Deus para a batalha da mente: a prática puritana da meditação bíblica, 17.

David W. Saxton

Os benefícios da prática da meditação bíblica

De fato, a meditação bíblica possui inúmeros benefícios, conforme afirmado por Saxton. Mas o que nos chama a atenção é que todos esses benefícios giram em torno de uma gloriosa realidade, qual seja, de que estamos unidos a Cristo e que, portanto, possuímos um relacionamento pessoal com o Deus da aliança.

Não pertencemos mais a nós mesmos (Gálatas 2.20), mas somos do nosso Amado e Ele é nosso (Cânticos 6.3).

Cristo Jesus levou nosso eu, nossa culpa, até a cruz do Calvário. É na cruz que vemos a nossa morte, mas também vemos uma gloriosa esperança, de uma nova vida em Cristo.

Com efeito, por meio da morte e ressurreição fomos unidos misticamente a Cristo Jesus, o Amado da nossa alma, numa união espiritual, plena e perfeita, que deve ser usufruída cotidianamente, mediante a prática da meditação bíblica.

Esta nova identidade é gerada pelo Espírito Santo de Deus, que não visa meramente produzir seres humanos melhores, mas o desejo do Espírito é de produzir em nosso interior uma inteira identidade com Cristo Jesus, num glorioso casamento espiritual.

Neste mesmo sentido, Grant Macaskill assim deixou registrado em seu livro “Vivendo em união com Cristo”:

O que Jesus leva à cruz é quem somos, nosso eu com toda a sua culpa, e o que desfrutamos em união com ele é precisamente quem ele é, sua plenitude com toda a sua glória. A atividade do Espírito na santificação, então, não tem a intenção de produzir uma versão melhor de nós mesmos, mas de realizar em nós a identidade moral pessoal de Jesus Cristo. [13]Grant Macaskill, Vivendo em união com Cristo: o evangelho de Paulo e a identidade moral cristã (São José dos Campos, SP: Editora Fiel, 2021), 61.

Grant Macaskill

De fato, não pertencemos mais a nós mesmos. Ao sermos alcançados pela graça, entramos numa união mística com Cristo Jesus. Não vivemos mais para nossos próprios desejos, mas o Amado nos conquistou e agora pertencemos a Ele para todo o sempre.

Ainda que continuemos habitando num corpo mortal e corruptível, cujo coração ainda possui inclinações para o mal, o pecado já não pode nos dominar, haja vista que a voz do Amado continua a ecoar em nosso interior dizendo: “Tu és meu!”.

Viver este grande amor nos leva à compreensão de nossa total dependência de Deus. Nestes teremos, a meditação bíblica também deve ser compreendida como uma disciplina espiritual que reafirma a nossa total dependência.

A meditação bíblica reafirma nossa dependência de Deus

Em sua obra “O discípulo radical”, John Stott cita o texto de João 21.18 e nos apresenta uma importante lição:

João nos diz que as palavras de Jesus se referiam especificamente a Pedro e sua morte; porém, elas agregam um importante princípio relacionado ao envelhecimento. Embora a independência seja apropriada em algumas circunstâncias, insisto na dependência como a postura mais característica de um discípulo radical. [14]John Stott, O discípulo radical (Viçosa, MG: Editora Ultimato, 2011), 93.

John Stott

Nesta mesma esteira, citando John Wyatt, John Stott diz que o “plano de Deus para nossa vida é que sejamos dependentes”.[15]Stott, 93.

Isaac Ambrose trabalha o conceito do “olhar para Cristo”. Segundo o puritano, o “olhar para Cristo” não se trata de um conhecimento flutuante, superficial, a respeito de Cristo, mas um sentimento sincero interior de Cristo. Também, não se trata de noções sobre Cristo, mas de movimentos sinceros em direção a Cristo, que estão implícitos neste olhar interior. [16]Isaac Ambrose, Looking unto Jesus, 8, acesso em 10 de novembro de 2023, … Continue reading

O pensamento espiritual à luz de John Owen

Ao trabalhar o conceito e as implicações do “pensamento espiritual”, John Owen escreve que precisamos compreender que o céu é um lugar onde estaremos completamente libertos do pecado e todas as suas consequências; e pensar sobre o céu é a prova de que realmente desejamos ter a mentalidade espiritual – “onde estiver o seu tesouro, aí também estará o seu coração” (Mateus 6.21). [17]John Owen, Pensando espiritualmente (São Paulo: PES – Publicações Evangélicas Selecionadas, 2019), 35–37.

Como dissemos inicialmente, meditação bíblica é pensar sobre Deus, é pensar no céu. Para vencer nosso coração enganoso é necessário lembrarmos da nossa total dependência de Deus. O abandono da prática da meditação torna-se, portanto, nocivo ao pensamento espiritual.

Owen prossegue afirmando a importância da prática da meditação bíblica para o pensamento espiritual e como tudo isso se relaciona com a comunhão relacional que temos com Deus:

É importante pensar em Cristo de maneira bíblica. Nada na Bíblia sugere que precisamos ter um crucifixo para nos fazer pensar nEle, ou que temos que visitar lugares especiais para que eles nos animem a meditar nEle. Devemos certificar-nos de que os meios de que nos utilizamos para ajudar-nos a meditar são espirituais. Orem continuamente rogando a ajuda do Espírito Santo. Leiam alguma passagem das Escrituras que ensinem algo sobre Cristo, e pensem nesse ensino. Existe comunhão real entre Cristo e os crentes. Isso acontece quando os crentes praticam meditação espiritual de maneira bíblica. Os que semeiam tais sementes, que messe colherão! Tais pensamentos sobre Cristo são muito bem aceitos por Ele (Cânticos de Salomão 2:14). Tais pensamentos preparam melhor os crentes para receberem o ensino de Cristo (Cânticos de Salomão 3:20). Certamente a omissão da prática de meditar fará com que os crentes percam a sua alegria em Cristo. As vezes eles estão ocupados demais; às vezes estão sendo negligentes; às vezes estão espiritualmente frios. Não é por esses meios que se fará com que a sua alegria espiritual seja abundante! (Cânticos de Salomão 5:2,3). [18]Ibidem, 39–40.

John Owen

Owen faz no texto acima alguns movimentos importantes. Ele afirma que é necessário para o pensamento espiritual não apenas ler as Escrituras e sobre como elas nos ensinam sobre Cristo, mas é necessário pensar sobre todo este ensino, meditar nessas verdades. E não apenas isso. É necessário compreendermos que existe uma comunhão relacional real entre Cristo e os crentes e esta comunhão é vivida quando os crentes praticam a meditação espiritual de forma bíblica.

De fato, assim como Owen afirma, a omissão da prática da meditação fará com que os crentes percam a sua alegria em Cristo Jesus. É preciso não apenas ler sobre Jesus, mas meditar sobre as verdades das Escrituras no coração. O prazer cristão está em meditar na Palavra de Deus todos os dias e, assim, desfrutar desta comunhão relacional com o Deus trino.

Owen também realiza a aplicação de todo este ensinamento ao livro de Cânticos de Salomão, dentro desta perspectiva relacional entre Cristo e os crentes.

A meditação bíblica e o casamento espiritual da Igreja com Cristo

Tom Schwanda, em seu livro “Soul Recreation: The Contemplative-Mystical Piety of Puritanism”, enfatiza que o Espírito Santo está no centro da teologia puritana de desenvolvimento e experiência do “casamento espiritual”. [19]Tom Schwanda, Soul Recreation: The Contemplative-Mystical Piety of Puritanism (Eugene, Oregon: Pickwick Publications, 2012), 55–56. Para tanto, Schwanda cita principalmente John Preston, Richard Sibbes, Thomas Goodwin e John Owen.

Assim, de forma significativa, segundo Schwanda, os puritanos deram ênfase à linguagem da união com Cristo e expandiram a compreensão de Calvino sobre a comunhão com Cristo. [20]Ibidem, 56.

Sobre este conceito de casamento espiritual, John Owen discorre que pelo fato de Cristo ter amado sua igreja, Ele mesmo se entregou por ela (Efésios 5.25), não considerando a vergonha dela (pecado) e enfrentando a cruz (Hebreus 12.2), a fim de poder alegrar-se com sua noiva e serem unidos eternamente – Cristo é da noiva e a noiva é de Cristo (Oséias 3.3). [21]John Owen, Comunhão com o Deus trino (São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2010), 118.

Nesta mesma senda, Owen prossegue discorrendo sobre o casamento espiritual nestes termos:

O momento de receber a igreja para si mesmo é o dia de seu casamento; a igreja é a noiva, sua esposa (Ap 19.7-8). A festa que oferece a seus santos é um banquete de casamento (Mt 22.3). As graças de sua igreja são os ornamentos de sua rainha (Sl 45.9-14); a comunhão que ele tem com seus santos é a mesma dos que estão envolvidos mutuamente em um relacionamento conjugal (Ct 1). Por isso, Paulo, ao descrever esses dois relacionamentos (marido e mulher, Cristo e sua igreja), faz transições repentinas e imperceptíveis de um para o outro em Efésios 5.22-32, concluindo o pensamento com uma aplicação para Cristo e para a igreja. [22]Ibidem, 118–19.

John Owen

Podemos observar que Owen faz uma ligação clara do relacionamento conjugal entre Cristo e sua igreja e o livro de Cânticos de Salomão, que logo na abertura inicia com um ardente desejo da noiva de ser beijada pelo noivo.

Hudson Taylor e o livro de Cantares de Salomão: a história de um grande amor

Ao comentar o livro de Cântico dos Cânticos, Hudson Taylor escreve que o discurso da noiva logo na abertura do livro não são palavras de alguém que está morto em delitos e pecados; ele observa que a fala da noiva já indica que ela teve seus olhos abertos para contemplar a beleza e a formosura do noivo, que ela anela de todo o coração fruir deste amor num relacionamento pactual. [23]Hudson Taylor, Cântico dos Cânticos: Um convite para viver em união e comunhão profunda com Deus (Paraná: Pão Diário, 2019), 22.

Hudson Taylor enfatiza que a alegria da noiva está em usufruir deste relacionamento com seu noivo. Antes de morrer de amores por seu noivo, ela não fruía da sua presença; na verdade, ela estava satisfeita com sua ausência, pois tinham outros afazeres e outros amores. No entanto, sua vida fora transformada e sua alma fora cativada pelo amor do noivo.

Quando o noivo a atraiu para si ela não mais pode amar outros amores, nem mesmo deseja viver um instante sequer longe do seu grande amor. Tudo o que ela deseja é ter um relacionamento pessoal com este noivo, que é traduzido pela súplica: “Beija-me com os beijos de tua boca; porque melhor é o teu amor do que o vinho” (Cântico 1.2).

O vinho é descrito na Palavra de Deus como uma dádiva criada por Deus e outorgada aos homens (Provérbios 31.6; Salmos 104.14-15). O vinho está presente em toda a Escritura como um motivo para o homem se alegrar. Jesus bebeu do fruto da vide e também realizou seu primeiro milagre, transformando água em vinho, numa festa de casamento (Lucas 7.33-35; João 2.1-11).

O vinho é também descrito como um tipo do sangue de Cristo Jesus, que é o selo da Nova Aliança, derramado em favor de muitos, do seu povo, na cruz do Calvário. Com efeito, os cristãos devem celebrar regularmente a Ceia do Senhor, comendo o pão e bebendo o vinho, em memória do Redentor, até que Ele venha (1 Coríntios 11.25-26).

A noiva, portanto, diz que o amor do noivo é melhor, mais excelente, do que o próprio vinho. Isto é, toda a alegria que Deus permitiu que o homem sentisse ao apreciar o vinho, de forma moderada, como ordena a Escritura, não se compara com o amor do Amado.

O beijo é a expressão deste grande amor. A noiva só deseja ser beijada porque o amor do Amado é incomparável com qualquer outro prazer nesta vida. Tudo o que ela deseja é ser beijada pelo Amado. É o ardente desejo de viver numa comunhão relacional com o noivo. Hudson Taylor, ao comentar sobre o amor da noiva pelo Amado, escreve que aqueles que não perderam o primeiro amor podem ainda sentir que as interrupções ocasionais da comunhão com o noivo estejam se tornando cada vez mais insuportáveis, à medida que o mundo tenha menos importância no viver e o Senhor ocupe todo o espaço do coração. A “ausência” do Amado torna-se, assim, cada vez mais insuportável. [24]Ibidem, 23.

No entanto, Taylor enfatiza que, na verdade, o Amado não se afasta da sua noiva, muito embora pode ser que ela tenha este tipo de sentimento.

Na verdade, o noivo sempre está à espera, mas são as condições do próprio coração da noiva que geram este tipo de sentimento. Assim, a inconstância e a indisciplina da noiva é que podem gerar este tipo de sentimento.

Todo o amor precisa ser regado, cultivado dia a dia. O Amado plantou o amor por sua noiva desde os tempos antigos, desde a eternidade (Efésios 1.3-5). Este amor foi selado com o sacrifício vicário no monte da Caveira (Calvário). Um amor que é sem limites, o amor de Deus por sua noiva.

O Espírito Santo como selo deste amor eterno

Apesar de toda a expressão do amor de Deus estar consolidada na cruz, Deus mesmo outorgou seu Espírito para selar este amor no coração dos eleitos, transformando-os à imagem do Seu Filho, confirmando este amor todos os dias.

À medida que o Espírito habita na igreja, ele mesmo confirma este amor e o alimenta todos os dias nos corações. E, assim, tudo o que a noiva deve clamar é “Vem, Amado meu!” (Cânticos de Salomão 8.14). O desejo ardente pela consolidação do casamento, nas Bodas do Cordeiro (Apocalipse 19.7), é o que deve nos motivar todos os dias a vivermos em comunhão com Deus.

Portanto, podemos concluir que meditar é pensar sobre essas realidades espirituais. Meditar é viver essas realidades, alimentando o coração com a esperança da consolidação do casamento espiritual.

Nossa união com Cristo, que já podemos usufruir aqui nesta vida, mediante a comunhão com o Espírito, é apenas o prelúdio de um eterno prazer: conhecer e amar a Deus para todo o sempre.

Conclusão

Portanto, podemos concluir que a meditação bíblica deve ser resgatada pelos cristãos, porquanto é nosso dever, conforme determinam as Escrituras, de meditar na Palavra de dia e de noite.

A popularização de metodologias de meditação de orientação pagã não pode ser vista como motivo de desencorajamento dos cristãos em praticarem a disciplina bíblica e espiritual da meditação, haja vista que, diferentemente das práticas orientais de esvaziamento da mente, meditar biblicamente é preencher a mente com a Palavra de Deus, num ardente desejo de fruir da comunhão com o Amado da nossa alma. Meditar é deleitar-se em Deus e em Sua Palavra.

Todos os benefícios da meditação bíblica giram em torno de uma gloriosa realidade espiritual: estamos unidos a Cristo num relacionamento pessoal. Não pertencemos mais a nós mesmos, mas agora somos do nosso Amado e Ele é nosso.

Esta nova identidade é gerada pelo Espírito Santo de Deus e visa produzir em nosso interior uma inteira identidade com Cristo Jesus, num glorioso casamento espiritual, o prelúdio da bem-aventurança.

Referências

Referências
1 David W. Saxton, O plano de Deus para a batalha da mente: a prática puritana da meditação bíblica (Brasília, DF: Éden Publicações, 2022), 11.
2 Thomas Watson, Um Tratado Sobre a Meditação: Um Cristão no Monte (Brasília: Legado Reformado, 2022), 10.
3 Ibidem, 11.
4 Watson, Um Tratado Sobre a Meditação: Um Cristão no Monte, 12.
5 Ibidem, 13.
6 Donald S. Whitney, Disciplinas espirituais para a vida cristã (São Paulo: Editora Batista Regular, 2021), 55.
7 Whitney, 55.
8 David Mathis, Hábitos espirituais: prazer em Jesus pela graça diária (São José dos Campos, SP: Editora Fiel, 2022), 52–53.
9 Mathis, Hábitos espirituais: prazer em Jesus pela graça diária, 52.
10 Whitney, 56.
11 Mathis, Hábitos espirituais: prazer em Jesus pela graça diária, 53.
12 Saxton, O plano de Deus para a batalha da mente: a prática puritana da meditação bíblica, 17.
13 Grant Macaskill, Vivendo em união com Cristo: o evangelho de Paulo e a identidade moral cristã (São José dos Campos, SP: Editora Fiel, 2021), 61.
14 John Stott, O discípulo radical (Viçosa, MG: Editora Ultimato, 2011), 93.
15 Stott, 93.
16 Isaac Ambrose, Looking unto Jesus, 8, acesso em 10 de novembro de 2023, http://www.digitalpuritan.net/Digital%20Puritan%20Resources/Ambrose,%20Isaac/The%20Works%20of%20Isaac%20Ambrose%20(Ind%20Works)/[IA]%20Looking%20Unto%20Jesus.pdf.
17 John Owen, Pensando espiritualmente (São Paulo: PES – Publicações Evangélicas Selecionadas, 2019), 35–37.
18 Ibidem, 39–40.
19 Tom Schwanda, Soul Recreation: The Contemplative-Mystical Piety of Puritanism (Eugene, Oregon: Pickwick Publications, 2012), 55–56.
20 Ibidem, 56.
21 John Owen, Comunhão com o Deus trino (São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2010), 118.
22 Ibidem, 118–19.
23 Hudson Taylor, Cântico dos Cânticos: Um convite para viver em união e comunhão profunda com Deus (Paraná: Pão Diário, 2019), 22.
24 Ibidem, 23.
Hudson Carvalho é Mestre em Divindade (M.Div.) pelo Seminário Martin Bucer (São José dos Campos, SP), com ênfase em Teologia Histórica e Sistemática. Atua como pastor na Igreja Reformada em Vila Velha, especialmente na parte de ensino. É editor do EvangelhoEterno.Org, que visa propagar o evangelho de Jesus Cristo por meio de uma abordagem bíblica e confessional (teologia reformada). É casado com Luane Magnago e tem uma filha, Alice.

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