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O Paradoxo da Vontade Divina: Como John Piper Reconcilia a Predestinação e o Desejo de Deus por Salvação

Entenda a aplicação teológica de 1 Timóteo 2:4

A dupla predestinação é bíblica? Entenda como John Piper explica 1 Timóteo 2:4 ("Deus deseja salvar todos") à luz da eleição (Romanos 9). Entenda a resposta de Piper sobre graça soberana, o dom do arrependimento e o paradoxo da vontade de Deus.

A teologia cristã é repleta de tensões que exigem reflexão profunda. Poucas são tão intensas quanto o aparente conflito entre a soberania de Deus na salvação e Seu desejo revelado de que todos sejam salvos.

Em 1 Timóteo 2:4, o apóstolo Paulo afirma que Deus “deseja que todas as pessoas sejam salvas e cheguem ao conhecimento da verdade”. No entanto, em outras passagens, como Efésios 1, Paulo fala de Deus nos escolhendo “nele antes da fundação do mundo”, um ato de predestinação que implica uma seleção.

Se Deus é todo-poderoso e deseja que todos sejam salvos, por que nem todos são salvos? E se Ele predestinou apenas alguns, como seu desejo por todos pode ser genuíno?

Se você ainda não leu meu artigo sobre os Inescrutáveis Caminhos: O Conhecimento de Deus nos Humilha, recomendo que você faça isso. Creio ser de extrema importância para você compreender um pouco melhor sobre alguns pilares que você precisa considerar à luz das Escrituras Sagradas.

O teólogo e pastor John Piper aborda essa tensão argumentando que a Bíblia mantém duas verdades simultâneas: a soberania absoluta de Deus e a responsabilidade moral humana. Para Piper, a chave não está em diminuir uma dessas verdades, mas em entender como a Bíblia as prioriza.[1]Veja mais em: https://www.desiringgod.org/interviews/is-double-predestination-biblical

1. Definindo a Predestinação (Simples e Dupla)

Para entender o argumento de Piper, é crucial definir os termos.

  • Predestinação (ou Eleição): Este é o ensino bíblico, visto claramente em Efésios 1:4-5 e Romanos 8:30, de que Deus, antes da criação, em Sua soberania, escolheu ativamente salvar um povo para Si (os eleitos). Essa escolha não se baseia em qualquer mérito ou fé prevista nesses indivíduos, mas unicamente em Sua graça e propósito.
  • Dupla Predestinação (ou Reprovação): Este termo refere-se à consequência dessa escolha. Se Deus escolheu ativamente alguns para a salvação, Ele necessariamente “passou por cima” de outros, destinando-os a permanecer em seu pecado e receber o justo julgamento por ele. Piper argumenta que isso não é meramente uma dedução lógica, mas é apoiado por textos bíblicos. Ele cita:
    • 1 Pedro 2:8: “Eles tropeçam porque desobedecem à palavra, para o que também foram destinados.”
    • Romanos 9:22: “…Deus, querendo mostrar a sua ira e dar a conhecer o seu poder, suportou com muita paciência os vasos de ira, preparados para a destruição.”

2. O Dilema Central: 1 Timóteo 2:4

O versículo-chave em questão (1 Timóteo 2:4) parece contradizer diretamente a ideia de que Deus destina alguns à destruição. Se Ele “deseja que todas as pessoas sejam salvas”, como Ele pode ter escolhido ativamente apenas algumas?

Piper ressalta que toda visão teológica deve lidar com o fato de que nem todos são salvos. Portanto, toda visão deve explicar o que “restringe” o desejo de Deus expresso em 1 Timóteo 2:4.

Ele apresenta duas explicações possíveis:

  1. A Visão do Livre-Arbítrio (que ele rejeita): Deus deseja salvar a todos, mas Ele é “impedido” por algo que Ele valoriza mais: a autodeterminação final (ou livre-arbítrio) do ser humano. Nesta visão, a escolha humana é o fator decisivo na salvação.
  2. A Visão da Graça Soberana (que ele defende): Deus deseja salvar a todos (em certo sentido), mas Ele é “impedido” por algo que Ele valoriza mais: a glória de Sua própria graça soberana, demonstrada na eleição incondicional.

3. A Chave Hermenêutica: 2 Timóteo 2:25

Como Piper decide entre essas duas visões? Ele argumenta que a própria Bíblia, e especificamente o próprio apóstolo Paulo, nos diz qual é a resposta.

Ele aponta para outra carta de Paulo, 2 Timóteo 2:25, onde Paulo instrui Timóteo a corrigir os oponentes com mansidão, na esperança de que “Deus lhes conceda o arrependimento que leva ao conhecimento da verdade”.

Este versículo é a chave do argumento de Piper.

Se o arrependimento – o ato necessário para a salvação – não é algo que uma pessoa produz por sua própria “autodeterminação final”, mas sim um dom que Deus concede, então a Visão 1 (livre-arbítrio como fator decisivo) desmorona.

Para Piper, Paulo não pode acreditar que a autodeterminação humana é o que impede Deus de salvar a todos, se o próprio Paulo acredita que o ato decisivo (arrependimento) é, em si, um dom soberanamente concedido por Deus.

Portanto, o que impede Deus de salvar a todos não é o livre-arbítrio humano, mas a Sua própria decisão soberana de glorificar Sua graça, concedendo o dom do arrependimento apenas aos eleitos.

4. Conclusão: Um Paradoxo, Não uma Contradição

John Piper conclui que a Bíblia não apresenta uma contradição lógica, mas sim um paradoxo profundo, ou um mistério. Devemos afirmar ambas as verdades que as Escrituras ensinam, mesmo que não possamos reconciliá-las completamente:

  1. A Soberania de Deus: Deus é absoluto e soberano na salvação. Ele escolhe quem salvará (Efésios 1) e concede soberanamente o dom do arrependimento (2 Timóteo 2:25).
  2. A Responsabilidade Humana: Os seres humanos são moralmente responsáveis por sua rebelião contra Deus. Ninguém é punido injustamente; aqueles que são condenados o são por causa de seus próprios pecados, pelos quais são plenamente responsáveis.

Nesta visão, ninguém que está no inferno pode culpar Deus, pois recebe a justiça que merece por seu pecado. E ninguém que está no céu pode levar o crédito, pois recebe a graça que não merece, unicamente pela decisão soberana de Deus.

Assim, 1 Timóteo 2:4 expressa o desejo genuíno e a disposição de Deus (o que Ele aprova e se agrada), mas não anula Seu propósito soberano e decreto final, que visa, acima de tudo, a glória de Sua graça soberana.

Hudson Carvalho é Mestre em Divindade (M.Div.) pelo Seminário Martin Bucer (São José dos Campos, SP), com ênfase em Teologia Histórica e Sistemática. Atua como pastor na Igreja Reformada em Vila Velha, especialmente na parte de ensino. É editor do EvangelhoEterno.Org, que visa propagar o evangelho de Jesus Cristo por meio de uma abordagem bíblica e confessional (teologia reformada). É casado com Luane Magnago e tem uma filha, Alice.

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