O que é semipelagianismo?

Uma adaptação da doutrina pelagiana e agostiniana

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Esta doutrina também é popularmente conhecida como “semiagostinianismo”, uma vez que os semipelagianos buscavam rechaçar o pelagianismo sem, contudo, seguir Agostinho em suas posições a respeito da graça e da predestinação. Assim, o semipelagianismo é uma doutrina que afirma que o homem não regenerado pelo poder do Espírito Santo possui condições de contribuir com a salvação da sua alma. Com efeito, o processo de salvação não seria um processo monergista, onde apenas o Deus todo-poderoso e soberano age no coração do homem; mas a ação do homem (obra) coopera com a graça de Deus.

Os semipelagianos sustentavam que o início da fé (initium fidei), ou seja, o primeiro ato de crer, está nas mãos do pecador e não de Deus. Em outras palavras, Deus disponibiliza Sua graça para todas as pessoas, de modo que cabe a uma delas tem capacidade para atentar para a graça divina por sua própria vontade.

Essa compreensão doutrinária alcançou grande parte do sul da França, sobretudo nos arredores de Marsella. O mestre monástico João Cassiano (360-435 d.C) escreveu tratados onde era proposta uma posição intermediária entre Pelágio e Agostinho. Apesar de a Igreja na era medieval ter sido auto declarada agostiniana, na verdade, aceitaram livremente a doutrina semipelagiana, haja vista que negavam compreender a graça irresistível e a predestinação nos moldes de Agostinho de Hipona.

No que acreditam?

Importante frizar que os semipelagianos também consideram o Pelagianismo uma heresia. Observa-se que eles até mesmo procuravam expor as diferenças entre sua compreensão doutrinária e a pelagiana. Com efeito, como previamente dissemos, o semipelagianismo consistia numa tentativa de conciliação entre as visões de Pelágio e de Agostinho a respeito da graça de Deus e a predestinação.

Os semipelagianos não negam o pecado original de Adão e sua contaminação no coração do homem, diferentemente do que defendiam os pelagianos. A doutrina semipelagiana admite que o homem, por sua própria natureza, está contaminado com o pecado original, de modo que sua vontade de buscar a Deus está enfraquecida, mas não a ponto de ser completamente incapaz de cooperar com a graça divina para a salvação.

Assim, apesar de compreenderem que há um pecado original, entendem que não existe depravação total do homem, mas uma depravação parcial. Assim, a regeneração é resultado de uma cooperação entre a vontade do homem e graça de Deus. Nesta senda, os semipelagianos entendem que a graça de Deus na vida do homem não é irresistível.

Importante destacar: enquanto Agostinho compreendia, à luz das Sagradas Escrituras, que a vontade do homem encontra-se morta em delitos e pecados, os semipelagianos entendiam que a vontade do homem encontra-se apenas debilitada e enfraquecida pelo pecado, mas não totalmente a ponto de exercer uma certa vontade de buscar a Deus.

Para deixar bem claro: a doutrina agostiniana (que influenciou totalmente a Reforma Protestante) entende que a regeneração é um ato monergista, onde apenas o Deus Soberano age no coração do homem. Já os semipelagianos adotam um modelo sinergista, onde o homem coopera juntamente com Deus para a sua própria salvação. O objetivo da doutrina semipelagiana era enfatizar, assim, a liberdade de escolha do homem e sua responsabilidade.

Exposição de João Cassiano

Um dos maiores expoentes do doutrina semipelagiana foi João Cassiano, que procurou refutar as compreensões agostinianas a respeito da salvação. Vejamos, assim, como João Cassiano sistematizou a doutrina semipelagiana:

  1. A pecaminosidade universal do homem foi introduzida pelo pecado original cometido por Adão;
  2. Após a Queda, a vontade do homem em buscar a Deus foi debilitada, mas não totalmente, de modo que ainda assim o homem é capaz de se inclinar a Deus por sua própria vontade;
  3. De fato, a graça de Deus é um pilar essencial do processo da salvação. Contudo, mesmo estando com a vontade debilitada de buscar a Deus, o homem tem condições de iniciar o processo de sua salvação e, por conseguinte, exercitar sua fé em Deus (initium fidei). Então, a graça de Deus fica disponível para toda a humanidade e cada pecador, ao contemplar a graça de Deus por meio de Jesus Cristo, possui condições de entender as coisas de Deus e assim aceitar a salvação (o homem coopera para sua regeneração);
  4. Assim, quando Deus percebe que o coração do homem se interessou pela graça, Deus intervém para ajudar o homem a crer. Assim, Deus ilumina e capacita o homem com sua graça com vistas à salvação;
  5. Com base no afirmado, a predestinação de Deus é baseada na presciência divina acerca da decisão do homem.

Por quê a doutrina semipelagiana deve continuar sendo refutada pela Igreja de Cristo?

À luz das Sagradas Escrituras, a doutrina semipelagiana encontra problemas do mesmo modo que a pelagiana. O que quero dizer é que os mesmos textos bíblicos que refutam o pelagianismo são aqueles que refutam o semipelagianismo. No Sínodo de Orange (529 d.C.) o semipelagianismo foi condenado oficialmente e considerado como heresia.

É importante destacar que antes de sermos regenerados pelo poder do Espírito Santo estávamos nós mortos em nossos delitos e pecados. É o Espírito Santo quem nos faz nascer de novo, regenera nosso coração. Vejamos a exposição sobre este tema em Efésios 2.1-8:

Ele vos deu vida, estando vós mortos nos vossos delitos e pecados, nos quais andastes outrora, segundo o curso deste mundo, segundo o príncipe da potestade do ar, do espírito que agora atua nos filhos da desobediência; entre os quais também todos nós andamos outrora, segundo as inclinações da nossa carne, fazendo a vontade da carne e dos pensamentos; e éramos, por natureza, filhos da ira, como também os demais. Mas Deus, sendo rico em misericórdia, por causa do grande amor com que nos amou, e estando nós mortos em nossos delitos, nos deu vida juntamente com Cristo, — pela graça sois salvos, e, juntamente com ele, nos ressuscitou, e nos fez assentar nos lugares celestiais em Cristo Jesus; para mostrar, nos séculos vindouros, a suprema riqueza da sua graça, em bondade para conosco, em Cristo Jesus. Porque pela graça sois salvos, mediante a fé; e isto não vem de vós; é dom de Deus; não de obras, para que ninguém se glorie. Pois somos feitura dele, criados em Cristo Jesus para boas obras, as quais Deus de antemão preparou para que andássemos nelas. Efésios 2.1-10

Devemos compreender que a carta de Paulo aos efésios é destinada à igreja do Senhor Jesus Cristo e não ao mundo. Observem que a Palavra é clara que o próprio Deus é quem nos ressuscitou. O homem não tem condições de decidir se quer ou não ressuscitar. O Estado do pecado não é meramente um debilidade, uma doença, mas um estado de MORTE! Devemos compreender que a Palavra de Deus é clara ao afirmar que não resta boa vontade em nós para que possamos, por nosso “livre arbítrio”, escolhermos Deus. Não! Na verdade, Deus nos escolheu, nos amou antes de todas as coisas:

Que se conclui? Temos nós qualquer vantagem? Não, de forma nenhuma; pois já temos demonstrado que todos, tanto judeus como gregos, estão debaixo do pecado; como está escrito: Não há justo, nem um sequer, não há quem entenda, não há quem busque a Deus; todos se extraviaram, à uma se fizeram inúteis; não há quem faça o bem, não há nem um sequer. A garganta deles é sepulcro aberto; com a língua, urdem engano, veneno de víbora está nos seus lábios, a boca, eles a têm cheia de maldição e de amargura; são os seus pés velozes para derramar sangue, nos seus caminhos, há destruição e miséria; desconheceram o caminho da paz. Não há temor de Deus diante de seus olhos. Romanos 3.9-18

Como expomos anteriormente, um dos pilares que o semipelagianismo se fundamenta é que a fé precede à regeneração. Ou seja, mesmo não sendo regenerado pelo Espírito Santo, o homem pode despertar dentro de si uma vontade de buscar a Deus. Entretanto, a bíblia diz exatamente o contrário. As Escrituras falam muito claro que primeiro é necessário o Espírito Santo regenere nosso coração para que depois venha a fé (que é dom de Deus, não vem de nós mesmos, vem da Eternidade).

Por isso, vos faço compreender que ninguém que fala pelo Espírito de Deus afirma: Anátema, Jesus! Por outro lado, ninguém pode dizer: Senhor Jesus!, senão pelo Espírito Santo. 1 Coríntios 12.3

A conversa do Senhor Jesus com Nicodemos é um grande exemplo disso:

A isto, respondeu Jesus: Em verdade, em verdade te digo que, se alguém não nascer de novo, não pode ver o reino de Deus. Perguntou-lhe Nicodemos: Como pode um homem nascer, sendo velho? Pode, porventura, voltar ao ventre materno e nascer segunda vez? Respondeu Jesus: Em verdade, em verdade te digo: quem não nascer da água e do Espírito não pode entrar no reino de Deus. O que é nascido da carne é carne; e o que é nascido do Espírito é espírito. João 3.3-6

Vemos que o Senhor Jesus falou sobre o reino, da necessidade de nascer de novo. Nicodemos, apesar de ter afirmado que Deus era com Jesus em todos os milagres aconteciam, não conseguia compreender as coisas espirituais, porquanto ainda não havia nascido de novo (regeneração). A expressão “nascer de novo” também pode ser interpretada como “nascer de cima” ou mesmo “nascer do alto”.  Jesus faz nítida separação das coisas que são do homem (carne) e das coisas que são de Deus (Espírito Santo).

A passagem de Nicodemos nos faz compreender que não basta acreditar que Jesus veio a este mundo. Para ser salvo é necessário que o homem nasça de novo, da água e do Espírito. Nicodemos não compreendeu as palavras do Senhor Jesus porque ainda não havia nascido de novo. Não basta apenas ouvir falar de Jesus, é preciso novo nascimento (regeneração).

Vemos que Nicodemos interpretou as palavras de Jesus de forma literal, conforme a natural razão do homem. Por quê? Porque o homem natural não consegue compreender os preceitos de Deus enquanto o próprio Deus, por sua graça, não descortinar o mistério das coisas espirituais.

Assim, enquanto a doutrina semipelagiana afirma que no coração do homem ainda restou algo bom, ainda que debilitado, a Palavra de Deus declara que o homem não regenerado está ESPIRITUALMENTE MORTO, não apenas doente.

Ninguém pode vir a mim se o Pai, que me enviou, não o trouxer; e eu o ressuscitarei no último dia. João 6.44

O homem só pode ser salvo se a graça de Deus o atrair. O mérito não é do homem, mas de Deus. A glória não é e nunca será do homem, mas exclusivamente de Deus. Ninguém vai a Cristo se o próprio Deus Pai não o atrair por sua graça.

Assim, pois, não depende de quem quer ou de quem corre, mas de usar Deus a sua misericórdia. Romanos 9.16

Opinião

A doutrina semipelagiana, assim como a pelagiana, colocam o homem no centro do processo da salvação. Esta compreensão doutrinária eleva o homem a um status de semideus, uma vez que a vontade do homem é capaz de impedir a vontade do Deus todo-poderoso e soberano, que toma Suas decisões da forma como bem entender, conforme seu próprio conselho, e não precisa do homem para absolutamente nada.

Quem guiou o Espírito do SENHOR? Ou, como seu conselheiro, o ensinou? Com quem tomou ele conselho, para que lhe desse compreensão? Quem o instruiu na vereda do juízo, e lhe ensinou sabedoria, e lhe mostrou o caminho de entendimento? Eis que as nações são consideradas por ele como um pingo que cai de um balde e como um grão de pó na balança; as ilhas são como pó fino que se levanta. Isaías 40.13–15

Vivemos numa sociedade antropocêntrica, mais do que nunca. O homem tenta ser o centro de todas as atenções. As pessoas possuem uma terrível obsessão por serem famosas, populares e adoradas pelas demais. Esta sede por ser o centro de tudo é decorrente do coração obstinado e morto em delitos e pecados.

O pecado atingiu todas as áreas do homem, de modo que sua capacidade de compreender as coisas de Deus não é meramente improvável, mas impossível!

Se Deus não se revelar, o homem não tem condições de por si só estabelecer sua relação com o Eterno. Não estamos falando que o homem não tem responsabilidade alguma daquilo que faz. O que quero dizer é que o próprio Deus é quem descortina o mistério do seu amor e, assim, regenera o coração homem. Quando os semipelagianos defendem que o homem tem capacidade para crer no Senhor Jesus, pelo exercício da fé, acabam esquecendo que a fé não emerge do homem, mas é dom de Deus:

Porque pela graça sois salvos, mediante a fé; e isto não vem de vós; é dom de Deus; não de obras, para que ninguém se glorie. Efésios 2.8-9 

Ora, se a fé viesse do próprio homem, poderíamos dizer que, afinal, a salvação nunca foi somente pela graça, mas também pelas obras do homem (a fé que emerge do seu próprio coração). Importante notar que um dos grandes arautos da Reforma foi o estabelecimento do seguinte princípio: SOLA GRATIA.

Assim, se a salvação é definida pelo próprio coração do homem, então a graça de Deus é diminuída e o homem é quem, afinal, define se deseja ou não ser salvo. Em outras palavras, se a salvação vem pela fé que brota do próprio coração do homem, logo, a salvação não seria somente pela graça, mas, também, por obra: pela fé que brota do próprio coração do homem.

Um coisa que quero deixar registrado: não acredito que as pessoas que seguem inconscientemente a doutrina semipelagiana não são salvas. Não é isso! Entendo que há muitos servos de Deus espalhados pela face da terra, que foram regenerados pelo poder do Espírito Santo (até porque, salvação é assunto da economia de Deus – só Cristo conhece verdadeiramente quem são Suas ovelhas). Mas vejo que o meio evangélico nos dias atuais possuem muitos resquícios semipelagianos em sua compreensão doutrinária. Trata-se, assim, de um erro grave de interpretação bíblica que leva à má compreensão da sã doutrina. Precisamos retornar às doutrinas da Reforma!

Com efeito, como membros do corpo de Cristo, devemos batalhar para que as doutrinas bíblicas não sejam distorcidas pela filosofia de vida, pelo antropocentrismo que rege nossa sociedade e pela ambição do ser humano de ser o centro das atenções de todo o universo.

Hudson Carvalho é Mestre em Divindade pelo Seminário Martin Bucer (São José dos Campos, SP), com ênfase em Teologia Histórica e Sistemática. Atua como pastor auxiliar na Igreja Reformada em Vila Velha, especialmente na parte de ensino.

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