Paulo utiliza a metáfora “o fruto do Espírito” para se referir às virtudes que demonstram a vida em Cristo. Ele não se refere ao fruto da fé, mas ao “fruto do Espírito” (ho karpos tou pneumatos). Em Gálatas 5:22-23, Paulo cataloga os componentes do “fruto do Espírito” como “amor, alegria, paz, paciência, amabilidade, bondade, fidelidade, mansidão e domínio próprio”.
Metáforas semelhantes e contrastantes
A passagem bíblica de Gálatas 5:22-23 é a única que menciona o “fruto do Espírito”, mas Paulo usa uma figura semelhante em outras partes da Bíblia. Ele compara as igrejas e a vida cristã a campos e jardins, onde aqueles que dedicam tempo e amor podem esperar resultados positivos, como “frutos para Deus” (Romanos 1.13; 7.4). Na passagem de Filipenses 1.22, Paulo destaca que os resultados de seu trabalho serão evidenciados por meio dos “frutos” que colherá ao longo da vida.
Em Efésios 5.9, encontramos uma referência próxima à ideia de “fruto do Espírito” na descrição do “fruto da luz” (ho karpos tou phōtos), que inclui bondade, justiça e verdade. O evangelho produz “frutos” que acompanham seu propósito (Colossenses 1.6, 10). O “fruto” da nova vida em Cristo é a justiça (Filipenses 1.11) e a santificação (Romanos 6.21–22).
Usando uma metáfora contrastante, Paulo descreve aqueles que não seguem Cristo como “infrutíferos” (akarpos). Em Efésios 5.11, ele fala sobre aqueles que vivem nas trevas e têm vidas sem frutos, o que é semelhante ao que é dito em Romanos 6.21. A vida não regenerada produz frutos para a morte, evidenciando vícios negativos em vez das virtudes positivas produzidas pelo Espírito (Romanos 7.4; Colossenses 3.5-9; Gálatas 5.19-21).
Naquele tempo, que resultados colhestes? Somente as coisas de que, agora, vos envergonhais; porque o fim delas é morte.
Almeida Revista e Atualizada (Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 1993), Rm 6.21. Sem grifos no original.
Assim, quando uma pessoa não é regenerada, sua vida produz frutos que levam à morte, demonstrando vícios negativos em vez das virtudes positivas produzidas pelo Espírito.
Segundo afirma David S. Dockery, em “Dictionary of Paul and his letters“[1]David S. Dockery, “Fruit of the Spirit”, in Dictionary of Paul and his letters, org. Gerald F. Hawthorne, Ralph P. Martin, e Daniel G. Reid (Downers Grove, IL: InterVarsity Press, 1993), 316.:
Paulo pode muito bem ter derivado a metáfora de frutificação ou infertilidade do Antigo Testamento. Lá, Israel é comparado a uma árvore frutífera ou vinha (por exemplo, Sl 80:8–18; Is 5:1–7; 27:2–6; Jr 2:21; 11:16; 12:10; Os 14:6).
Isaías acusou a ‘vinha’ do Senhor por não produzir o seu justo fruto (Is 5:2,4). Quando Israel for restaurado, no entanto, e o Espírito for derramado, a terra será frutífera (Is 32:15–16), e as árvores e a videira darão seus frutos (Joel 2:18–32).
David S. Dockery
O Contexto dos Gálatas
Como mencionado anteriormente, o texto de Gálatas 5.22-23 é a passagem principal que descreve o “fruto do Espírito”. Vejamos:
Mas o fruto do Espírito é: amor, alegria, paz, longanimidade, benignidade, bondade, fidelidade, mansidão, domínio próprio. Contra estas coisas não há lei.
Almeida Revista e Atualizada (Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 1993), Gl 5.21–23.
A conhecida carta de Paulo aos Gálatas contém a controvérsia em que o apóstolo defende sua posição e a conflituosa relação entre a Lei e o Espírito. Paulo considerava que os crentes gentios estavam incorrendo em uma prática proibida ao se envolverem com a Lei, o que poderia comprometer a autenticidade do evangelho (Gálatas 2.11-21).
Em Gálatas 5.13-26, Paulo exorta os crentes da Galácia a viver/andar pelo Espírito e não seguir os desejos carnais característicos daqueles que estão fora da comunidade cristã. Era necessário que Paulo mostrasse que a liberdade da Lei não anula de forma alguma as obrigações de uma vida ética. No entanto, devemos moldar as responsabilidades da conduta moral não pelos ditames da Lei, mas sim pela operação, capacitação e suficiência do Espírito.
A Carne e o Espírito
Paulo faz um contraste para enfatizar as ações caracterizadas pelo Espírito (pneumati) em Gálatas 5, nos versos 16 e 18. A primeira exortação (verso 16), pneumati peripateite, é traduzida como “andar no Espírito”. Já no verso 18, na segunda exortação, o significando é “ser guiado pelo Espírito” (pneumati agethe). As duas ideias são muito semelhantes quando uma é iluminada pela outra. “Andar pelo Espírito” significa não satisfazer os desejos da carne, enquanto “ser guiado pelo Espírito” é o oposto de estar sob a Lei. Assim, Gálatas 5.18 exclui o legalismo como um guia para o crente. Veja:
Mas, se sois guiados pelo Espírito, não estais sob a lei.
Almeida Revista e Atualizada (Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 1993), Gl 5.18.
Logo em seguida o apóstolo lista uma série de obras da carne (nos versos 19-21), quais sejam: “prostituição, impureza, lascívia, idolatria, feitiçarias, inimizades, porfias, ciúmes, iras, discórdias, dissenções, facções, invejas, bebedices, glutonarias e outras coisas semelhantes a essas“. Veja, então, que o rol elencado pelo apóstolo não é taxativo, mas exemplificativo; isto é, podem conter outras obras da carne, que o apóstolo Paulo diz que são também obras semelhantes às listadas.
Dessa forma, cabe ressaltar que Paulo usa os termos desejo (epitímia) e carne (sarx) para enfatizar o contraste de caráter entre a vida controlada pelo Espírito e a vida governada pelos impulsos carnais.
Forma de Vida no Espírito
A lista do “fruto do Espírito” em Gálatas 5.22-23 molda positivamente a vida no Espírito. A referida lista contrasta com a lista de vícios de Gálatas 5.19-21. Observe a afirmação de Paulo em Gálatas 5.25, “Já que vivemos pelo Espírito, andemos também pelo Espírito“. Esta afirmação resume esta seção com a repetição da palavra “Espírito” (pneumati). O resumo enfático de Paulo é uma exortação para “manter o passo [stoichōmen] com o Espírito”.
Em suma, o contexto destaca o poder do Espírito para motivação e capacitação na vida cristã. A visão de Paulo sobre a vida no Espírito se manifesta de maneiras positivas e negativas. O caráter ético produzido naqueles que andam no Espírito manifesta-se nas virtudes (o fruto do Espírito).
O Fruto do Espírito
Para entendermos plenamente a lista do “fruto do Espírito” em Gálatas 5.22-23, devemos compará-la com as listas semelhantes que o apóstolo Paulo elaborou em Filipenses 4.8 e Colossenses 3.12-15. Essa graça vai além dos limites naturais da virtude que os crentes possuem, portanto, trata-se de uma capacitação dada pelo Espírito Santo. Isto é decorrente do próprio processo de santificação que o Espírito realiza no coração dos crentes.
A manifestação dessas virtudes demonstram o trabalho que o Espírito realiza no interior dos crentes. Em suma, as virtudes evidenciam a obra do Espírito no desenvolvimento dos crentes, em contraste com as “obras da carne” (Gálatas 5:19-21).
Paulo, então, lista nove (9) virtudes, ou também chamadas de “graças”, que compõem o “Fruto do Espírito” – o modo pelo qual vivem os crentes devem viver. São eles:
1. Amor (Agapē)
É extremamente relevante que o amor esteja no topo da lista. Veja que essa ênfase está presente também quando Paulo discorre a respeito do dom de profecia (1 Coríntios 13), a ponto de considerar que o amor é maior do que a fé e a esperança. Em outras palavras, os crentes foram chamados para amar, assim como Cristo os amou.
O amor caracteriza Deus e quando realizado por homens e mulheres o amor cumpre a Lei, conforme está escrito em Romanos 13.10. O amor é uma ação de autodoação em benefício dos outros, não necessariamente uma emoção. Evidentemente, o melhor exemplo desse amor é a doação de Cristo na cruz (Gálatas 2.20; Efésios 5.25).
2. Alegria (Chara)
Apesar de Paulo repetidamente exortar os crentes a se alegrarem no Senhor, como por exemplo vemos em Filipenses 3.1; 4.4, a única ocorrência da palavra alegria (chara) em Gálatas está aqui na lista do fruto do Espírito. Assim, mesmo nas provações os crentes podem alegrar-se no Senhor, sabendo que Deus é soberano e nunca, jamais, abandonará um filho seu. Quando entendemos isso, não nos encontraremos em situação de total desespero.
Como sabemos, o amor é um atributo comunicável de Deus, isto é, Deus imprimiu no ser humano o desejo de amar e de se sentir amado. De igual modo, a alegria é um atributo que Deus imprimiu no ser humano. Importante notar que a alegria é a base da esperança cristã. Veja o que Paulo escreveu na epístola aos Romanos:
Porque o reino de Deus não é comida nem bebida, mas justiça, e paz, e alegria no Espírito Santo.
Almeida Revista e Atualizada (Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 1993), Rm 14.17. Grifos acrescidos.
3. Paz (Eirēnē)
O cristianismo genuíno demonstra a paz de Deus, pois os crentes têm paz com Deus: “Justificados, pois, mediante a fé, temos paz com Deus por meio de nosso Senhor Jesus Cristo;” (Romanos 5.1). Paulo argumenta que a justificação pela fé é o que produz a paz no interior dos crentes.
É importante notar que não se pode compreender a paz cristã com mero sentimento. A paz que Deus outorga aos seus filhos não é circunstancial. Digo isto porque muitas pessoas enfrentam crises de fé por sentirem falta de paz, pois estão enfrentando dificuldades, das mais variadas possíveis.
Se a paz que Deus dá a seus filhos fosse meramente um sentimento, os cristãos, ao enfrentarem suas provas na caminhada, certamente entrariam em desespero, haja vista que nossos sentimentos mudam constantemente, principalmente em decorrência do tipo de situação em que estamos envolvidos.
Assim, a paz que excede todo entendimento (Filipenses 4.7), proveniente de Deus, não varia diante das nossas circunstâncias, haja vista não ser mero sentimento. A paz que Cristo oferece é uma certeza que decorre da nossa justificação. Assim, ainda que os cristãos enfrentem problemas na jornada, eles devem sempre se lembrar que possuem a verdadeira paz, mediante a obra de Cristo Jesus.
4. Paciência ou Longanimidade (Makrothymia)
Paciência é a firmeza e o poder de permanência. A paciência é uma qualidade de Deus (Salmo 103.8) e o povo de Deus deve reproduzi-la (1 Coríntios 13.4; Efésios 4.2; Colossenses 1.11; 3.12).
5. Amabilidade ou Benignidade (Chrēstotēs)
A benignidade é uma qualidade e ação graciosa de Deus para com os pecadores. (Romanos 2.4; Efésios 2.7; Tito 3.4). O Espírito Santo produz nos crentes a amabilidade (benignidade), que coloca o amor em ação. Isto é, não se pode amar sem praticar. Portanto, os cristãos devem usar de benevolência no trato com os outros, conforme Paulo registrou em Efésios 4.32:
Antes, sede uns para com os outros benignos, compassivos, perdoando-vos uns aos outros, como também Deus, em Cristo, vos perdoou.
Almeida Revista e Atualizada (Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 1993), Ef 4.32. Grifos acrescidos.
6. Bondade (Agathōsynē)
A bondade inclui a ideia de generosidade, mas se concentra na excelência da moral.
7. Fidelidade (Pistis)
Pistis é uma palavra grega que pode ser traduzido como “fé” ou “fidelidade”. Assim como Deus é fiel (Romanos 3.3), seu povo também deve ser fiel, isto é, um povo digno de confiança, assim como Deus também é digno de toda a confiança.
8. Mansidão ou Gentileza (Prautēs)
A mansidão e o autocontrole, embora sejam notadamente virtudes diferentes, estão intimamente relacionados. Como destinatários da graça de Deus, os crentes devem ser gentis no trato com o próximo.
Assim como Deus não nos pune de imediato por nossos pecados, pois aguarda o momento do arrependimento, devemos também demonstrar gentileza para com o próximo. Mais tarde Paulo vai falar sobre como exercer a mansidão para com um irmão que tenha ofendido a igreja (Gálatas 6.1).[2]J. V. Fesko, Galatians, org. Jon D. Payne, The Lectio Continua Expository Commentary on the New Testament (Powder Springs, GA: Tolle Lege Press, 2012), 180.
9. Domínio próprio, Autocontrole ou Temperança (Enkrateia)
Como último atributo do fruto do Espírito, o domínio próprio é especialmente importante. A ideia de autocontrole foi introduzida na ética grega por Sócrates e, na época de Paulo, a palavra se tornou um conceito primário no pensamento helenístico. Por estar na última posição da lista de Paulo, isso pode indicar que assim como o amor, a primeira virtude, é o cumprimento da Lei, o autocontrole cristão cumpre a exigência completa da ética grega.
Ao comentar esta passagem, Lutero afirma que Paulo deseja que os cristãos vivam de forma sóbria e que não sejam adúlteros, fornicadores (relações sexuais fora do casamento), devassos, contenciosos e bêbados. Dessa forma, Paulo está sempre comparando as obras da carne com as obras praticadas por aqueles que possuem o fruto do Espírito. [3]Martinho Lutero, Comentário sobre Gálatas (Oak Harbor, WA: Logos Research Systems, Inc., 1997), 525–526.
Conclusão
Portanto, enquanto a lista de vícios ou “obras da carne” não é estruturada, o fruto do Espírito, em todos os seus elementos, é caracterizado por uma unidade estruturada. Tudo inicia com o amor e finaliza com o autocontrole (domínio próprio).
A Igreja de Cristo deve viver a realidade do fruto do Espírito de forma plena. Por meio do fruto do Espírito podemos observar exteriormente aquilo que o Espírito Santo tem produzido no interior dos crentes. As obras da carne, muito embora insistentemente tentem viver no coração daqueles que já foram regenerados pelo Espírito, devem ser extirpadas dentro do processo de santificação — processo de conformidade com a imagem de Cristo.
Assim, os irmãos que viviam na região da Galácia, os destinatários primários das instruções de Paulo, não deveriam estar preocupados de que o abandono da Lei pelo Espírito os levará à libertinagem, visto que Paulo os assegura de que as obras da carne não se vencem com a prática do legalismo, mas somente no poder do Espírito Santo.
Referências[+]
↑1 | David S. Dockery, “Fruit of the Spirit”, in Dictionary of Paul and his letters, org. Gerald F. Hawthorne, Ralph P. Martin, e Daniel G. Reid (Downers Grove, IL: InterVarsity Press, 1993), 316. |
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↑2 | J. V. Fesko, Galatians, org. Jon D. Payne, The Lectio Continua Expository Commentary on the New Testament (Powder Springs, GA: Tolle Lege Press, 2012), 180. |
↑3 | Martinho Lutero, Comentário sobre Gálatas (Oak Harbor, WA: Logos Research Systems, Inc., 1997), 525–526. |