Este ramo do nosso assunto é de grande importância, embora tema que não pareça assim para todos os meus leitores. Tratarei dele brevemente, mas não ouso ignorá-lo completamente. Muitos tendem a olhar apenas para a superfície das coisas na religião e consideram as distinções sutis na teologia como questões de “palavras e nomes”, que têm pouco valor real. Mas eu alerto todos aqueles que levam a sério suas almas que o desconforto que surge por não “distinguir as coisas que diferem” na doutrina cristã é realmente muito grande; e eu os aconselho especialmente, se amam a paz, a buscar visões claras sobre o assunto que temos diante de nós. Justificação e santificação são duas coisas distintas, devemos sempre lembrar. No entanto, há pontos em que elas concordam e pontos em que diferem. Vamos tentar descobrir quais são eles.
Em que, então, a justificação e a santificação são SEMELHANTES?
As semelhanças entre a justificação e a santificação
a. Ambas procedem originalmente da graça gratuita de Deus. É somente por Sua dádiva que os crentes são justificados ou santificados.
b. Ambas fazem parte da grande obra de salvação que Cristo, na aliança eterna, empreendeu em favor de Seu povo. Cristo é a fonte da vida, da qual fluem o perdão e a santidade. A raiz de cada um é Cristo.
c. Ambas são encontradas nas mesmas pessoas. Aqueles que são justificados são sempre santificados, e aqueles que são santificados são sempre justificados. Deus os uniu, e eles não podem ser separados.
d. Ambas começam ao mesmo tempo. No momento em que uma pessoa começa a ser justificada, ela também começa a ser santificada. Ela pode não sentir isso, mas é um fato.
e. Ambas são igualmente necessárias para a salvação. Ninguém jamais alcançou o céu sem um coração renovado, bem como o perdão, sem a graça do Espírito, bem como o sangue de Cristo, sem uma aptidão para a glória eterna, bem como um título. Uma é tão necessária quanto a outra.
Esses são os pontos em que a justificação e a santificação concordam. Vamos agora inverter o quadro e ver em que eles diferem.
As diferenças entre a justificação e a santificação
a. A justificação é considerar e contar um homem como justo por causa de outro, Jesus Cristo, o Senhor. A santificação é tornar um homem interiormente justo, embora possa ser em um grau muito fraco.
b. A justiça que temos pela nossa justificação não é nossa, mas a justiça eterna e perfeita do nosso grande Mediador Cristo, imputada a nós e tornada nossa pela fé. A justiça que temos pela santificação é nossa própria justiça, transmitida, inerente e operada em nós pelo Espírito Santo, mas misturada com muita fraqueza e imperfeição.
c. Na justificação, nossas próprias obras não têm lugar algum, e a simples fé em Cristo é a única coisa necessária. Na santificação, nossas próprias obras são de grande importância, e Deus nos ordena que lutemos, vigiemos, oremos, nos esforcemos, nos demos trabalho e nos esforcemos.
d. A justificação é uma obra concluída e completa, e o homem é perfeitamente justificado no momento em que crê. A santificação é uma obra imperfeita, comparativamente, e nunca será aperfeiçoada até chegarmos ao céu.
e. A justificação não admite crescimento ou aumento: o homem é tão justificado na hora em que vem a Cristo pela fé quanto será por toda a eternidade. A santificação é eminentemente uma obra progressiva e admite crescimento e ampliação contínuos enquanto o homem viver.
f. A justificação tem referência especial às nossas pessoas, à nossa posição diante de Deus e à nossa libertação da culpa. A santificação tem referência especial à nossa natureza e à renovação moral de nossos corações.
g. A justificação nos dá o direito ao céu e a ousadia para entrar nele. A santificação nos torna aptos para o céu e nos prepara para desfrutá-lo quando lá morarmos.
h. A justificação é o ato de Deus em relação a nós e não é facilmente discernível pelos outros. A santificação é a obra de Deus dentro de nós e não pode ser escondida em sua manifestação externa aos olhos dos homens.
Recomendo essas distinções à atenção de todos os meus leitores e peço que reflitam bem sobre elas. Estou convencido de que uma das grandes causas da obscuridade e dos sentimentos desconfortáveis de muitas pessoas bem-intencionadas em matéria de religião é o hábito de confundir, e não distinguir, justificação e santificação. Nunca é demais enfatizar em nossas mentes que são duas coisas distintas. Sem dúvida, elas não podem ser divididas, e todo aquele que participa de uma delas participa de ambas. Mas nunca, jamais elas devem ser confundidas, e nunca a distinção entre elas deve ser esquecida.
A natureza e as marcas visíveis da santificação foram apresentadas diante de nós. Que reflexões práticas toda essa questão deve suscitar em nossas mentes?
Como entender as diferenças entre a justificação e a santificação impactam nossa vida cristã?
1. Por um lado, vamos todos despertar para a percepção do estado perigoso em que se encontram muitos que professam ser cristãos. Sem santidade, ninguém verá o Senhor; sem santificação, não há salvação (Hb 12:14). Então, quanta religião chamada assim é perfeitamente inútil! Que proporção imensa de frequentadores de igrejas e capelas está na estrada larga que leva à destruição! O pensamento é terrível, esmagador e opressor. Oh, que os pregadores e professores abram os olhos e percebam a condição das almas ao seu redor! Oh, que os homens possam ser persuadidos a “fugir da ira que está por vir”! Se almas não santificadas podem ser salvas e ir para o céu, a Bíblia não é verdadeira. No entanto, a Bíblia é verdadeira e não pode mentir! Qual será o fim?
2. Vamos nos certificar de nossa própria condição e nunca descansar até sentirmos e sabermos que somos “santificados”. Quais são nossos gostos, escolhas, preferências e inclinações? Essa é a grande questão decisiva. Pouco importa o que desejamos, o que esperamos e o que queremos ser antes de morrer. O que somos agora? O que estamos fazendo? Somos santificados ou não? Se não, a culpa é toda nossa.
3. Se quisermos ser santificados, nosso caminho é claro e simples: devemos começar com Cristo. Devemos ir a Ele como pecadores, sem nenhuma desculpa além da necessidade absoluta, e lançar nossas almas sobre Ele pela fé, para ter paz e reconciliação com Deus. Devemos nos colocar em Suas mãos, como nas mãos de um bom médico, e clamar a Ele por misericórdia e graça. Não devemos esperar nada para trazer conosco como recomendação. O primeiro passo para a santificação, não menos do que para a justificação, é vir com fé a Cristo. Devemos primeiro viver e depois trabalhar.
4. Se quisermos crescer em santidade e nos tornar mais santificados, devemos continuar continuamente como começamos, e estar sempre fazendo novas aplicações a Cristo. Ele é a Cabeça da qual todos os membros devem ser supridos (Efésios 4:16). Viver a vida de fé diária no Filho de Deus e diariamente extrair de Sua plenitude a graça e a força prometidas que Ele reservou para Seu povo — este é o grande segredo da santificação progressiva. Os crentes que parecem estar estagnados geralmente estão negligenciando a comunhão íntima com Jesus e, assim, entristecendo o Espírito. Aquele que orou: “Santifica-os”, na última noite antes de Sua crucificação, está infinitamente disposto a ajudar todos aqueles que, pela fé, pedem Sua ajuda e desejam ser mais santificados.
5. Não esperemos demais de nossos próprios corações aqui embaixo. No nosso melhor, encontraremos em nós mesmos motivos diários para humilhação e descobriremos que somos devedores necessitados de misericórdia e graça a cada hora. Quanto mais luz tivermos, mais veremos nossa própria imperfeição. Éramos pecadores quando começamos, e continuaremos sendo pecadores à medida que avançamos: renovados, perdoados, justificados, mas pecadores até o fim. Nossa perfeição absoluta ainda está por vir, e a expectativa dela é uma das razões pelas quais devemos ansiar pelo céu.
6. Finalmente, nunca nos envergonhemos de valorizar a santificação e lutar por um alto padrão de santidade. Enquanto alguns se satisfazem com um grau miseravelmente baixo de realização e outros não têm vergonha de viver sem qualquer santidade, contentando-se em apenas frequentar a igreja e a capela, mas sem nunca progredir, como um cavalo em um moinho, vamos permanecer firmes nos caminhos antigos, buscar a santidade eminente para nós mesmos e recomendá-la com ousadia aos outros. Essa é a única maneira de sermos realmente felizes.
Conclusão
Vamos nos convencer, independentemente do que os outros possam dizer, de que a santidade é felicidade e que o homem que vive a vida mais confortavelmente é o homem santificado. Sem dúvida, existem alguns cristãos verdadeiros que, devido à saúde debilitada, provações familiares ou outras causas secretas, desfrutam de pouco conforto sensível e passam a vida inteira lamentando-se no caminho para o céu. Mas esses são casos excepcionais. Como regra geral, no longo prazo da vida, ver-se-á que as pessoas “santificadas” são as mais felizes da terra. Elas têm confortos sólidos que o mundo não pode dar nem tirar. “Os caminhos da sabedoria são caminhos de prazer.” “Grande paz têm aqueles que amam a Tua lei.” Foi dito por Aquele que não pode mentir: “Meu jugo é suave e meu fardo é leve.” Mas também está escrito: “Não há paz para os ímpios” (Provérbios 3:17; Salmos 119:165).[1]Este texto foi traduzido pelo EvangelhoEterno.org e extraído do livro Holiness, de J. C. Ryle, cap. SANCTIFICATION, 3. The distinction between justification and sanctification.