O Evangelho não é um convite, mas uma proclamação!

Entenda o pensamento de Arthur W. Pink sobre a oferta da salvação

Evangelismo, salvação, soberania de Deus, A. W. Pink.

“O Evangelho não é uma ‘oferta’ para ser espalhada por vendedores ambulantes de evangelismo. O Evangelho não é um mero convite, mas uma proclamação, uma proclamação a respeito de Cristo; verdadeira quer os homens acreditem nela ou não.”[1]Arthur W. Pink, The Sovereignty of God (Baker Books, 1984) p. 209

Esta é provavelmente uma das citações mais infames de A.W. Pink (1886-1952) de todos os tempos. A citação é encontrada em sua obra mais conhecida, The Sovereignty of God (Deus é Soberano – tradução publicada pela Editora Fiel). Pode parecer que Pink pensava que o evangelho não deveria ser ofertado a todos. Alguns, ainda, acusaram A. W. Pink de ser um hipercalvinista, isto é, como se ele fosse um opositor ao evangelismo.

No entanto, é isso que Pink realmente quis dizer? Será que Pink é contra a ideia do evangelho ser “oferecido” a todos? Iain Murray[2]Iain Murray, The Life of Arthur W. Pink (Banner of Truth, 2011) p. 320, em sua biografia de Pink, referindo-se a esta citação, menciona:

Junto com os hipercalvinistas, [Pink] ainda queria rejeitar a ideia de que os convites do evangelho são uma ‘oferta’ de Cristo. … Em vez disso, ele pensava que deveria ser apresentado principalmente como um testemunho – ‘não um mero convite, mas uma proclamação’.

A pregação do Evangelho era uma declaração de fatos através dos quais os eleitos são levados à fé, enquanto que ‘Deus permite’ que ela [a fé] ‘caia nos ouvidos dos não eleitos

Iain Murray (sem grifos no original)

Dado o contexto desta citação na obra The Sovereignty of God, bem como o pensamento sistemático e cronológico de Pink à época, podemos concluir claramente que ele não era contra a ideia de pregar, proclamar ou mesmo oferecer o evangelho. Ao invés disso, a citação é uma declaração específica contra os meios pelos quais o evangelho estava sendo “oferecido”, o que não difere muito do que ocorre em nossos dias.

A. W. Pink exortou que o evangelho, por sua própria natureza, necessita de ser partilhado e proclamado a todos! Isto é o que veremos a seguir.

Arthur W. Pink e a “Oferta” de Salvação

Pink viveu e ministrou durante uma época em que a teologia centrada no homem dominava a paisagem evangélica. A. W. Tozer, outro pregador que uma vez gracejou que tinha “pregado a si mesmo em todas as conferências bíblicas”, fez a seguinte avaliação do cristianismo durante o seu tempo (e o de Pink):

O cristianismo atual é centrado no homem, não em Deus. Deus é obrigado a esperar pacientemente, e até respeitosamente, pelos caprichos dos homens. A imagem de Deus atualmente popular é a de um Pai distraído, lutando em desespero de coração para que as pessoas aceitem um Salvador de quem não sentem necessidade e em quem têm muito pouco interesse.

Para persuadir essas almas autossuficientes a responderem às Suas ofertas generosas, Deus fará quase tudo, até mesmo usar métodos de vendedor e falar com elas da maneira mais chata que se possa imaginar. Esta visão das coisas é, evidentemente, uma espécie de romantismo religioso que, embora use frequentemente termos lisonjeiros e por vezes embaraçosos em louvor de Deus, consegue, no entanto, fazer do homem a estrela do espetáculo.

A.W. Tozer[3]A.W. Tozer. Man: The Dwelling Place of God27

Como sabemos, A. W. Pink pregava com sinceridade o calvinismo e a soberania de Deus, à luz da Palavra do Senhor. Isso por si só já o deixava de fora do evangelismo dominante de sua época. No entanto, as convicções de Pink sobre a natureza da igreja, do evangelho e da salvação agravaram ainda mais sua rejeição.

Como Tozer, Pink estava totalmente consternado com o estado da igreja e do evangelismo. Criticando o estado do “chamado evangelismo de [seu] dia”, que era “uma tristeza para os cristãos genuínos”, em seu artigo sobre evangelismo publicado na edição de julho de 1948 da Studies in the Scriptures, Pink denuncia:

Aqueles evangelistas baratos que não visam mais do que apressar as pessoas a fazerem uma profissão formal de fé para que o número de membros das igrejas possa aumentar […]. A menos que eles vejam firmemente a conversão da maneira como Deus vê — a maneira pela qual Ele deve ser glorificado — eles [as pessoas] rapidamente começarão a transigir nos meios que empregam.

O desejo febril do evangelismo moderno não é como promover a glória do triuno Jeová, mas como multiplicar as conversões. Toda a corrente da atividade evangélica durante os últimos cinquenta anos tomou essa direção. Perdendo de vista o fim de Deus, as igrejas criaram meios próprios.

Arthur W. Pink[4]Arthur W. Pink. Present Day Evangelism. Disponível em https://gracegems.org/Pink2/present_day_evangelism.htm (sem grifos no original)

A falha do evangelismo contemporâneo: ênfase em números em vez de Cristo e salvação

O evangelismo contemporâneo, na visão de Pink, errou em suas prioridades e entendeu mal o foco do evangelho. Em vez de se concentrar em Cristo, concentrou-se no pecador. Em vez de o evangelismo ser um veículo no qual Deus é glorificado por meio da proclamação não adulterada da salvação ao pecador arrependido, houve grande ênfase pelos números.

Isso levou os chamados “evangelistas” a tentar uma infinidade de táticas, ainda que teatrais, a fim de “gerar conversões”, sem transmitir qualquer substância real das Escrituras. Isso muitas vezes levou, como consequência, muitas pessoas não regeneradas na igreja a se apegarem a uma noção superficial do evangelho. Pessoas que, na experiência de Pink, acreditavam que poderiam evitar o inferno simplesmente “acreditando” intelectualmente, sem exibir qualquer fé real, e ao mesmo tempo acreditando que poderiam manter seus desejos carnais e mundanos:

A natureza da salvação de Cristo é lamentavelmente deturpada pelo ‘evangelista’ atual. Ele anuncia um Salvador do Inferno, ao invés de um Salvador do pecado. E é por isso que tantos são fatalmente enganados, pois há multidões que desejam escapar do lago de fogo, mas que não desejam ser libertos de sua carnalidade e mundanismo.

Arthur W. Pink [5]Arthur W. Pink. Signs of the Times, Studies in the Scriptures, December 1937

Assim, podemos concluir que é importante ler a citação de Pink (que o Evangelho não é uma “oferta”, mas uma proclamação) de acordo com todo o contexto do evangelismo praticado em seu tempo. Infelizmente, alguns teólogos sem instrução criticam a fala de Pink acusando-o de “hipercalvinismo”, quando na verdade ele estava defendo o evangelho apostólico e bíblico, não fingido.

A. W. Pink Era Contra o Evangelismo?

Além do mais, na época em que escrevia sua obra The Sovereignty of God, e suas posteriores revisões, A. W. Pink estava envolvido com campanhas evangelísticas. No início da década de 1920, ele estava envolvido com Tent Evangelism na Califórnia e Seattle. Pink teve algum relacionamento com o ministério de Open-Air Campaigners, enquanto estava em Sydney [6]Confira mais em “Basement Town Hall, United Intercessory Services“, Sydney Morning Herald, 4th April 1925, citado em https://awpink.org/2019/05/12/pink-and-the-gospel-offer/, e também esteve envolvido em muitas Conferências Bíblicas nos Estados Unidos, Austrália e Grã-Bretanha, algumas das quais havia ênfase explícita à prática do evangelismo.[7]Confira mais em “Bible Conference: Emphasising Evangelism“, Brooklyn Daily Eagle, 19th November 1921, citado em https://awpink.org/2019/05/12/pink-and-the-gospel-offer/

No entanto, Pink tinha uma aversão particular por aqueles que ele sentia que “venderam pouco” o evangelho. Eles não passavam de vendedores ambulantes evangelísticos, fazendo tudo o que podiam para ganhar convertidos, ao mesmo tempo em que apresentavam uma articulação vazia da verdade e, fundamentalmente, um Deus anêmico.

A Falha dos “Vendedores Ambulantes” em Transmitir o Verdadeiro Evangelho

Esses vendedores ambulantes falharam em retratar a realidade da pecaminosidade do pecado, falharam em levar as pessoas a um verdadeiro entendimento de sua necessidade de um Salvador e evitaram pregar sobre o dever contínuo de santidade e exercício da fé do cristão. Em vez disso, muitos apresentaram o evangelho de uma forma que potencialmente abordava algum mal moral ou social, destacando a possibilidade de evitar o julgamento final e, então, convidando o ouvinte a tomar uma decisão por Cristo. A oferta estava sobre a mesa, se ao menos o pecador a aceitasse.

Pink estava determinado a resistir a essa forma de evangelismo decisório, que elogiava a capacidade do homem em detrimento da soberania de Deus e que buscava dar aos homens segurança sem substância. Ele queria tanto deixar claro que a Salvação pertence ao SENHOR[8]referência ao Salmo 3.8: “Do Senhor é a salvação, e sobre o teu povo, a tua bênção.”, como desmantelar a noção de que o ônus da salvação de alguém recaía sobre o próprio mensageiro (os evangelistas, vendedores ambulantes).

Podemos notar isso em seu quarto sermão sobre Eleição no Tabernáculo de Ashfield, proferido em 1925, onde ele usa uma linguagem semelhante à citação em questão:

A maioria das pessoas neste século vinte é tão ignorante que imagina que o evangelho diz respeito aos pecadores. Não, o evangelho não é sobre pecadores! O evangelho é sobre Cristo! É sobre a pessoa e a obra do Filho de Deus! […] O evangelho não é uma “oferta”, o evangelho é uma proclamação, não um “convite”. O evangelho é uma proclamação sobre Cristo, e o evangelho é verdadeiro, ainda que nenhum homem na terra nesta noite acredite nele! Minha crença no evangelho não torna o evangelho verdadeiro. O evangelho é verdadeiro quer eu acredite ou não, porque o evangelho não é sobre mim, o evangelho é sobre Cristo.

[…] Não somos responsáveis por trazer pecadores a Cristo. […] não há nenhum de nós [que] pode fazer isso; não temos o poder. Nossa responsabilidade é levar Cristo ao pecador. Você entendeu? Nossa responsabilidade é pregar Cristo ao pecador!

A. W. Pink[9]A. W. Pink. Election: Address by A.W. Pink at Ashfield Baptist Church, 26/6/1925 (sem grifos no original)

O Problema do Evangelismo Superficial na Igreja

Neste mesmo sermão, A. W. Pink enfrenta o problema de seu tempo (sobre o evangelismo que visa apenas aumentar o número de membros da igreja, sem se preocupar com a regeneração). Veja:

Estamos mais preocupados com a bênção do homem do que com a glória de Cristo! Não é verdade? Não é verdade que a primeira grande pergunta feita em todos os lugares hoje é: Quais são os “resultados”? Qual é o fruto? Quantas pessoas foram salvas em sua igreja no ano passado? Não estou dizendo que a pergunta não tem importância, mas digo que se essa for a primeira pergunta que se faz, isso apenas mostra em que nível baixo estamos vivendo!

A. W. Pink[10]Arthur W. Pink, op. cit. (sem grifos no original)

Esta compreensão, tanto do evangelho como uma proclamação autorizada, quanto do dever do homem de se arrepender e se voltar para Cristo, permeou a estrutura teológica em relação ao evangelismo ao longo de toda a vida de A. W. Pink.

Aliás, é provável que as pregações do apóstolo Paulo em Atos 17 tenham particularmente influenciado Pink. Paulo “proclamou” as boas novas de Cristo em Tessalônica (17:3), Beréia (17:13) e Atenas (Atos 17:23). Em Atenas, Paulo finaliza sua pregação afirmando que Deus “ordena que todas as pessoas em todos os lugares se arrependam” (Atos 17:30).

No entanto, como vimos, A. W. Pink nunca reprimiu a prática do evangelismo, na verdade, ele mesmo estava envolvido em muitas evangelizações ao longo de sua vida. A. W. Pink desejava que o evangelismo estivesse enraizado na doutrina, na Palavra de Deus. Ele também acreditava que o evangelismo é um dever fundamental de todos os cristãos, que é proclamar o evangelho a todo o mundo, pregando a Cristo Jesus.

Pink acreditava que o evangelho deveria ser pregado, proclamado e oferecido a todos. No entanto, o evangelismo deveria ser uma proclamação autoritária que Deus usa para atrair à fé os seus eleitos. Assim, Deus decretou que o meio pelo qual ele separaria o trigo do joio, qual seja, por meio da proclamação da majestosa obra, realização e glória de Cristo [11]Arthur W. Pink, op. cit., p. 210.

Conclusão

Ante o exposto, podemos claramente observar que a visão de A. W. Pink sobre a soberania de Deus não visou, de maneira alguma, restringir ou dificultar o evangelismo. Em vez disso, Pink entendeu, à luz das Escrituras, que Deus é soberano e que atrairia os pecadores pela proclamação do evangelho. Isso, na verdade, compeliu A. W. Pink a defender o evangelismo correto, à luz das Escrituras. Pink enfatizava em suas pregações claramente a depravação radical do homem e a bondade de Deus.

Assim, o evangelho não é uma oferta lançada ao acaso, mas uma proclamação fiel de Cristo Jesus, o Filho de Deus, que morreu na cruz para salvar pecadores! Evangelismo se faz à luz das Escrituras.

A prática do evangelismo não pode ser comparada a uma bandeja ministrada pelos crentes que saem pelas ruas oferecendo “um prato de comida” ao faminto, que pode ser “rejeitado” ou “aceito”; também, muitas vezes a “comida” que é oferecida é a promessa vazia de felicidade, prosperidade financeira, curas e milagres, ao invés de oferecer o próprio Cristo ressurreto que santifica pecadores e os traz de forma eficaz a um ambiente de comunhão.

Hudson Carvalho

Que estas verdades ecoem em seus ouvidos. Que este breve texto encoraje você a praticar o evangelismo de maneira correta, não como uma “oferta” solta ao vento, mas como uma proclamação genuína do Cristo ressurreto que retinirá de forma eficaz no coração dos eleitos.

E certa mulher chamada Lídia, vendedora de púrpura, da cidade de Tiatira, e que temia a Deus, nos escutava e o Senhor lhe abriu o coração para atender às coisas que Paulo dizia.

Almeida Revista e Atualizada (Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 1993), At 16.14. (sem grifos no original)

De fato, Cristo Jesus não pode ser anunciado como aquele que apenas visa livrar o homem da condenação eterna, do Lago de Fogo. Cristo deve ser anunciado como o Deus que se fez homem e morreu na cruz porque desejava manter uma eterna comunhão relacional com seu povo!

Este artigo foi inspirado na publicação “PINK AND THE GOSPEL ‘OFFER'”, published in Reformation Today (May-June 2019), iss. 289, 23-31.

Referências

Referências
1 Arthur W. Pink, The Sovereignty of God (Baker Books, 1984) p. 209
2 Iain Murray, The Life of Arthur W. Pink (Banner of Truth, 2011) p. 320
3 A.W. Tozer. Man: The Dwelling Place of God27
4 Arthur W. Pink. Present Day Evangelism. Disponível em https://gracegems.org/Pink2/present_day_evangelism.htm
5 Arthur W. Pink. Signs of the Times, Studies in the Scriptures, December 1937
6 Confira mais em “Basement Town Hall, United Intercessory Services“, Sydney Morning Herald, 4th April 1925, citado em https://awpink.org/2019/05/12/pink-and-the-gospel-offer/
7 Confira mais em “Bible Conference: Emphasising Evangelism“, Brooklyn Daily Eagle, 19th November 1921, citado em https://awpink.org/2019/05/12/pink-and-the-gospel-offer/
8 referência ao Salmo 3.8: “Do Senhor é a salvação, e sobre o teu povo, a tua bênção.”
9 A. W. Pink. Election: Address by A.W. Pink at Ashfield Baptist Church, 26/6/1925
10 Arthur W. Pink, op. cit.
11 Arthur W. Pink, op. cit., p. 210
Hudson Carvalho é Mestre em Divindade (M.Div.) pelo Seminário Martin Bucer (São José dos Campos, SP), com ênfase em Teologia Histórica e Sistemática. Atua como pastor na Igreja Reformada em Vila Velha, especialmente na parte de ensino. É editor do EvangelhoEterno.Org, que visa propagar o evangelho de Jesus Cristo por meio de uma abordagem bíblica e confessional (teologia reformada). É casado com Luane Magnago e tem uma filha, Alice.

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